Mãe, retalhos de toda história

De pedacinho em pedacinho nasce uma mãe.

Não são exatamente novos os quadrados que compõe essa colcha de retalhos. Onde estavam tão bem guardados tais pedaços? Em algum armário de ancestralidade, talvez?

A mulher gesta o filho. A mulher gesta a mãe.

Mas a gestação não dura apenas nove meses.

Vem de antes, quiçá lá do seu parto…

Ou ainda de tempos mais antigos… de algum espaço atemporal de memória, arquétipo, ancestralidade, história. Um fio que costura a mãe a um acervo de humanidade. O todo, pela parte.

Existem desafios que já estavam aí, nas paredes da sua história, na argamassa dos músculos. Com a fecundação de um ser, eles brotam, mas vem de outras bandas, dá pra sentir…

Potências e instintos também, eclodem enquanto o bebê forma o corpo dentro do corpo. Mas já circulavam nos rios de sangue da memória, corporal, astral, existencial.

Dimensões antes tão docemente ignoráveis agora se impõem atroz. O físico! Eu já tinha tanto corpo assim e ignorava? Um detalhe já não é um detalhe.

Estar grávida é de uma corporeidade radical.

3h da manhã?

Vou virar pro lado e voltar a dormir.

“Não”, diz o corpo.

“Antes come, não estou negociando, é um aviso.”

Incontáveis pães com manteiga atravessaram minhas madrugas de início de gravidez…

Alguns gestos na mãe se sutilizam.

Outros se aterram feito pata de elefante.

O que em mim é matéria nunca antes esteve tão latente.

O que em mim é intocável nunca se fez tão presente.

Sim, estou no mundo da lua, com orbita própria e alheia a muitas ordens terrestres. Indescritível a aproximação com tal astro, tão fascinante. Horas minguante, horas redonda e absoluta feito minha barriga.

Mas no exercício da palavra, onde busca-se o indizível, nomear o que não tem nome, daria pra qualificar tal estado como dispersa, mais difusa, e por isso, menos precisa. E no entanto tão centrada!

Como nunca, percebo tudo.

E se isso não se chama “atenta”, eu não sei como chama.

Dispersa e atenta… e pode isso? Pode.

De fato grávidas podem coisas que quiçá em nenhum outro momento, o ser humano pode. Aliás essa é a experiência de maior poder que conheço. Poder:  ter possibilidades de, não vamos confundir com bélico exemplo de poder que vemos no nosso sistema. Ter possibilidades… somente ali concedidas, para uma graça sem tamanho. Repleta de desafios. (Repito: repleta!!).

Mas uma graça! Que nos faz rir e chorar feito bebê, intensamente verdadeiro em sua gargalhada, que no segundo seguinte já é choro, do mais sentido.

Sim, rir e chorar vem mesmo da mesma caverna da gente.

Gruta de eco extenso e poroso.

Mas se a gestação de uma mãe dura mais de uma vida, quando seria então o parto da mãe? Junto ao parto do filho? Essas ideias visitam meu corpo, que ainda não pariu, e no entanto já é tão mãe.

Eu não sou respostas agora.

Meu corpo respira perguntas com novo sentido. E curiosamente não busca respostas. Mas oxigena o que tem de inacabado em cada experiência de transformação. Ansiedades a parte e presentes, claro. Mas essas não vem mesmo do corpo, que tão lindamente se ocupa do presente.

Quando a ansiedade açoita,  minha mão busca a barriga, e ali posso alguma quietude para sentir o meu filho sacolejando em meu ventre.

Não preciso parir para saber que o parto é um renascimento. Ainda mais agora que um rebento alarga meus ossos, sentidos e possibilidades. E se ao renascer morrem e nascem partes, que força maior daria luz a mãe, que gesto há milênios, se não o momento de trazer meu filho ao mundo?

Nesse renascimento parto de quem eu sou e fui, e me desabrigo e desabrocho num constante vir-a-ser. As passagens são muitas e significantes. Não se sabe bem o que significam, mas a sua maneira resignificam todos significados, sentidos e desígnios dessa vida.

São portas, janelas, portais e também vitrais coloridos como aqueles quando arte e igreja se entrelaçavam.

Não tem superfície que a maternidade não toca.

Não tem profundidade que a maternidade não desloca.

Degusto a cada dia a percepção de que o bebê também não chega de uma só vez…

Porque a mãe chegaria? 

A mãe vem vindo… atravessando a noite dos tempos. No escuro do corpo os passos largos podem ser guiados. “Não abra os olhos curiosos e impositivos, mãe. Abra os sentidos.” Parece me dizer da barriga, meu filho…

Ser canal da vida, tarefa tão especial…

Mas afinal, não somos isso o tempo todo?

Somos.

Mas algo agora é diferente… é reluzente e corporal aquilo que através de mim chega. Luz e corpo tem meu filho, não duvido. Minha mente escarafuncha cada milímetro, investiga, questiona, mas não consegue implantar dúvida alguma. Luz e corpo tem meu filho.

E luz aqui é apenas uma palavra que encontrei para falar sobre o que não tem nome e não é matéria.

Sua matéria movimenta a minha. E como fascina sentir seus movimentos em mim. Presente da vida. Não trocaria por nada essa sensação. Ele mexe, um sorriso doce e sereno me veste a alma mais que a boca.

Sua luz me desloca antes mesmo de sua chegada. Num arco de envergadura grandiosa e misteriosa. Tão claramente movedora de montanhas, vales dentro e fora de mim se moveram e se movem, pra que eu o receba em minha vida, em meu corpo.

Um universo inteiro já fui e mal começamos nossa jornada…

Há  25 semanas, ele me habita…

Presente de Deus.

E pra falar em Deus adotarei mais um gesto simplista.

Se você tem qualquer questão com a palavra Deus, substitua.

Por amor, vida, natureza, mistério.

O termo que desacelera sua mente é o que melhor convém para o encontro com essas palavras.

Que a gente não ouse denominar, a gente sabe do que está falando.

Estou no segundo trimestre da gestação e curto as mexidas do bebe como a mãe transbordante entusiasta da vida.

E os palpiteiros de plantão – inclusive homens que não tiveram suas  barrigas borboletando – já me avisaram que isso pode ser até incômodo quando a barriga pesar, o espaço apertar, o fôlego faltar, etc. Daria um texto a parte esse tom quase ameaçador de “quem avisa amigo é”,  com o qual todos chegam com inúmeras notícias inquietantes sobre o que você há de viver enquanto estiver gravida, parindo, mãe então, nem se fala!

Sim, é possível reconhecer boas intenções em quase tudo que se ouve. Mas de fato, na maioria das vezes, chega mais a aflição alheia do que qualquer outra coisa.

Me parece um período que inclui tanta mudança, que nenhuma dança acompanha a música sem sair do compasso. Aí os dançarinos levantam placas supondo os tropeços comuns a toda valsa. Com certa sensatez ou mesmo diplomacia alguns acrescentam no final do alerta:  “mas pra cada um é de um jeito…”. Claro que a maternidade também promove aproximações como seres mágicos que falam palavras que brilham feito estrelas…

Enfim, como não se sugestionar diante da caixinha de surpresas que é a maternidade, paternidade? Aliás, grávida, você é a própria caixa onde o desconhecido ganha vez…!!

Estar grávida é de uma corporeidade tão ímpar que até as palavras agora parecem nascer mais do meu corpo.

E apesar de tão único o caminho de cada corpo e sua história, me parece que em todos os casos é ali que a saída mora. No corpo. Essa é o tônica: abrir caminho para o corpo consentir. Consentir a coragem do corpo, a bravura do corpo. Entregar-se ao mistério. Sair do labirinto mental. Desemaranhar da arquitetura emocional. Estar com os instintos.

Abarcar esse todo, uno e dual. Da faísca a força. Da fragilidade a humildade, o descontrole. Do filho, a mãe. Do intangível e imprescindível, o pai. Pra num lapso de luz, parir um pouquinho da vida, em forma de gente que se fez unida e então se separa, para poder ainda mais vida.

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