Amor sem fim ao meu Tio Luiz, capitão generoso

Ontem meu tio Luiz se foi dessas bandas.

Capitão Urso, foi navegar em outros mares.

 

Se despedir é sempre estranho.

Mas a nossa tristeza é nutritiva, pois temos a serenidade da certeza de que ele estava em paz.

A gente chora aquele choro farto e logo depois parece que o peito esta ainda mais preenchido. De um amor seguro, que não tem nada a ver com ter poucos desafios. Acreditem, ao contrario, posto que a vida dele mesmo foi um grande exemplo de resiliência frente a uma historia tão puxada.

Esse “a gente” que aqui digo, são irmãos, filhos, sobrinhos, netos, cunhadas, amigos chegados. Uma rede conectada por um amor pujante, que tão lindamente vem se expressando nesse momento de despedida. Uma tristeza grande, mas que não tem uma gota se quer de coisa ruim. O queríamos por mais um milhão de passeios de barco? Sim, sem sombra de duvidas. Mas se sua hora chegou sabemos agradecer a grandeza das milhas percorridas juntos.

 

Esse tio eu ganhei pra valer mesmo depois que meu pai se foi, há 15 anos. Antes ele já estava ali, mas eu não podia ver direito. Eu não via os fios invisíveis que ele sustentava junto ao meu pai e seu outro irmão, João. Junto a Tia Vera, Tia Cecilia, minha mãe, Neuza e outros tantos que foram margem enquanto eu aprendia a segurar o remo da minha própria vida.

Fios de porto seguro e afeto. Pois mesmo com todas as tempestades, eu cresci acreditando que a vida é possível e boa sempre, mesmo quando enterramos um dos nossos.

 

Depois que meu pai se foi, de quando em quando tio Luiz aparecia tirando coelhos voadores da cartola. Eu nunca via o que ele estava vendo antes dele me mostrar. Gestos simples e de uma grandiosidade que não tem palavra. Me marcaram a vida, e aos poucos, fui engolindo feito saliva densa o merecimento de ter ele como tio. E enfim de ter essa grande figura por perto vida a fora, como ser humano que se fez presente para os seus, e também para os demais que cruzaram sua rota.

 

Ele era urso, bronco e a única pessoa na minha vida que nunca deixou de me chamar de Luciana, sem jamais ceder ao tão familiar “Lu”. Mas sua doçura estava ali, pra quem quisesse ver. E ele generosamente me mostrou ela, sem que eu buscasse enxerga-lo. Presente da vida e eu agradeço de coração agasalhado. Esse agasalho de afeto, é termo dele, ao receber o amor dos seus, nesses últimos dias de vida.

 

Um mês depois da ida repentina de meu pai, me formei na faculdade. Tio Luiz apareceu com flores nas mãos e suspensórios, claro (porque estilo jamais lhe faltou)! Nunca vou me esquecer. Me deu parabéns e me perguntou se eu tinha algo programado para aquela noite especial. Eu só chorava… então ele me pegou pelo braços e me levou na pizzaria onde íamos sempre com meu pai. Aquela lá na Cardoso de Almeida, que me foge o nome, lembram? Eu continuava a chorar, mas agora chorava também de agasalho de amor.

 

A partir daquele momento, ele estava sempre ali de alguma maneira, e dava seu jeitinho de saber se eu estava tocando meu barco, encarando as tempestades e desfrutando da paisagem. Um olhar atento de tio, de pai mesmo, de alguém que com amor zela de fato pela jornada de uma sobrinha.

 

Depois da partida de meu pai, com uma paciência inigualável, ele fez inúmeras reuniões comigo e com meu irmão. Para que a gente entendesse que havia algo para ser pego em nossas mãos – e que essas mãos precisariam ser laboriosas para tal tarefa. Ao longo dos anos a paciência se estendia e enquanto não pegamos, ele não largou. Era tanto enrosco que nem parecia herança, mas hoje sei que essa herança veio na medida, que alguns herdam dinheiro desembaraçado, e outros herdam também historias que são como nós de marinheiro, que quando desatados, são caminhos sistêmicos que se abrem, pra que a próxima geração possa mais lonjuras ainda, quem sabe?

 

As reuniões eram longas e exaustivas. Eu não entendia nada de tanta burocracia e enroscos. Aquilo tudo pra mim tinha mesmo era o gosto amargo da perda do meu pai.

Certo dia, ele nos disse algo que mudou a minha relação com meu irmão, e assim sendo, mudou também todas minhas outras relações.

Era tarde, chovia junto ao mar, estávamos cansados e não parávamos de falar. Lá pelas tantas ele disse: “Escuta aqui, vocês não precisam concordar em tudo. O mais importante já esta posto, vocês sabem que podem confiar um no outro. Então deixem de milonga e parem de se estressar desnecessariamente, dividam responsabilidades, deleguem e avancem.”

O tom era de bronca de amor. Mas não era apenas um homem capaz em sua franqueza e com visão esclarecida sobre o assunto. Algo ali falava mais alto e isso eu conseguia ouvir e entender sem embaraço algum. Era um tio amoroso e zeloso com os filhos de seu irmão. E esse amor chegou e me trouxe muita cura. Ate hoje me lembro dessas palavras quando me pego em bifurcações com irmão, marido e com aqueles com quem tenho que navegar em um barco só, juntos, concordando ou não.

 

 

Anos depois lá vem o Capitão do Mar com mais uma das suas, marcantes.

Ele morava na Barra do Una, casa de beira de rio onde passamos nossas ferias da infância. Um dia combinei com meu primo que íamos lá passar o carnaval juntos com ele. Dali ha pouco me liga meu primo e me diz: “poxa Lu, não vai rolar, os filhos da mulher do meu pai vão e a casa ta cheia.” Ué, ta bem, segue o baile.

Uma hora depois meu primo volta a me ligar: “Lu, meu pai disse que sobrinha dele não fica sem espaço na casa dele não, pra você vir que a gente da um jeito”. Fomos e como sempre fomos pra lá de bem recebidos. Banquetes em abundancia mal traduzem o quanto comemos na casa dele. Tem gente que é assim, expressa a hospitalidade e o amor com comida.

 

Aquilo me marcou profundamente.

Pois no fim, quando a coisa aperta na vida, é essa sensação que nos salva, a de que pertencemos. Se na casa de tio meu eu hei de caber sempre, parece que eu caibo melhor em mim. E a única coisa que me faz sentir que equilibra o tanto que recebi, é a determinação amorosa de fazer também assim pelos que vem chegando. Pois é, ursos também plantam sementes que florescem por longas gerações.

 

Passado uns anos, eu casei. Coisa simples, almoço de família, festa pros amigos chegados. Mas não tinha casa que nos abrigasse pra essa comemoração. Nessa época, tio Luiz morava na casa da minha avó. Deixou de morar na praia que era um sonho de vida recém realizado, para cuidar de sua mãe, pois seu pai, meu avô, tinha partido.

Então ele me liga e diz: “Luciana, faça o almoço aqui, arrumamos tudo para todos se sintam confortáveis. Se for o caso, alugamos umas mesas e colocamos água no feijão.” E assim foi feito.

Desse telefonema até o tal almoço, ele me ligou quase todos os dias. Cuidou dos detalhes como se aquele evento fosse a coisa mais importante pra ele naquele momento. E disse ainda: “do feijão cuido eu!” E lá estavam mil panelas de feijão naquele dia especial! Sem linguiça pros vegetarianos, e mais mil panelas com muita linguiça para os demais. Bem temperadinho, folhas de louro e mais uma vez a generosidade, o afeto em forma de ajuda, acolhimento, companheirismo. E lá estava eu de novo, recebendo, com a sensação de fazer parte, de ter um alguém por mim, alguém que te acolhe com tudo mesmo, abraço de urso, forte e carinhoso.

 

Pois a semente que meu tio Urso, meu pai, meu tio João e alguns outros plantaram em nós, vingou. A gente enterra os nossos com bravura. Chora com verdade e confia que valha a pena demais seguir com ainda mais respeito por essa vida misteriosa. Pois o legado de amor que eles nos deixam nos da muita força, afinal, temos que passar a tocha acesa pra próxima geração, não é mesmo primos?

 

Vai em paz tio, seus filhos são pessoas maravilhosas, fortes, sensíveis, verdadeiras, companheiros pra uma vida inteira, aconteça o que acontecer. Pessoas que não arredam o pé, que acertam o alvo e uivam na lua cheia.

Vai em paz tio, pois nós vemos você, do seu jeito assim, com tudo o que tem direito. E se sua vida foi dura, você deu baile em superação.

Vai em paz que você nos marcou em generosidade, e sua despedida esta marcada por gratidão, daquelas assim, do tamanho do mar sem fim.

 

27 de janeiro de 2021 – Luciana Barros

Leave a Comment